prostituição : não, não é um trabalho, não é uma profissão!

tania navarro swain
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A quem interessa a manutenção da prostituição com uma fachada legal, transformada em uma “profissão”? A quem interessa, de fato, a existência de corpos disponíveis à compra e à venda, em um mercado em expansão? A questão crucial é a demanda, é a lei da falocracia que se impõe mais uma vez, pois os benefícios são apenas para os homens, enquanto proxenetas ou clientes.

As mulheres em estado de prostituição não terão um melhor status social com uma legalização enquanto “profissão”. Mas o opróbrio indelével que acompanha a prostituição não se derrama sobre os clientes. Estão ao abrigo da condescendência social, fruto de um pacto “entre homens”, que transforma as mulheres em presa e objeto sexual.

A prostituição é um dos elementos do sistema de controle e de dominação das mulheres. Quando uma parte da população feminina é destinada à utilização sexual pelos homens e institucionalizada enquanto “trabalho”, o destino das mulheres em geral é reafirmado: submetidas e assujeitadas, em seu conjunto, à ordem do pênis, do pai, do patriarcado.

A prostituição não se refere, portanto, a uma problemática individual, mas diz respeito a um  sistema que impõe a vontade do masculino sobre o conjunto do feminino, assim definido pela sexualidade. A prostituição é uma questão de controle, onde o binário heterossexual se constrói, se afirma e se enraíza.

Há uma proposição simplista, ingênua ou de má fé que apresenta a prostituição como resultado de uma escolha, de um exercício de liberdade . Apaga-se assim todo o mecanismo de exploração e redução das mulheres a seus corpos, cavidades a serem preenchidas pelo assujeitamento  ou pela força. Assim desaparece toda uma literatura feminista que analisa os aspectos materiais e simbólicos do “direito” dado aos homens de possuir e transformar as mulheres em objeto de desfrute.

A liberdade na prostituição é simplesmente a liberdade dos homens de exercer seu poder sobre as mulheres, de impor seu sexo e sua lei. A prostituição das mulheres é, no imaginário patriarcal, um dado “natural”, da mesma maneira que a maternidade seria um destino “natural”, proposições que conduzem, ambas, à elementar transformação de seres humanos em nstrumentos para benefício dos homens: elas terão SEUS FILHOS e lhes darão SEU prazer.

A imagem de mulher em estado de prostituição derrama-se sobre todas as mulheres como corpos disponíveis ao desejo sexual e ao desejo de dominação que habita os homens. É assim que as guerras trazem o estupro como recompensa aos guerreiros triunfantes; da mesma forma, o pacto masculino reza que, uma mulher sem a companhia de um homem não pode ser livre de seus movimentos e da escolha de seus caminhos sem ter sobre ela a ameaça do estupro.

“A mais velha profissão do mundo” [1]é uma frase tantas vezes repetida, porém sem qualquer resíduo histórico; tem entretanto, em sua propagação, o papel de justificativa para a existência da venda e da compra de mulheres, como algo que “sempre foi assim”.  Mas em história, nada é dado de modo universal, pois a multiplicidade do humano torna tudo possível, nada fixo, permanente, incontornável.

Assim, a venda de mulheres com fins sexuais é construída historicamente e não é um dado de “natureza”, antinômico com a dinâmica do social.[2]. Mas tudo se passa no discurso e nas análises recorrentes como se a prostituição fosse um “mal necessário”, condenada mas tolerada, tendo em vista as “necessidades” dos homens. Deste modo, os “clientes” não são nunca postos em questão, pois considera-se que tem o direito implícito e inalienável sobre os corpos das mulheres.

Liberdade

É interessante observar a contradição de um masculino que se arvora o detentor exclusivo da “razão” e entretanto, quando é de seu interesse, se declara possuído pelas injunções do “instinto sexual” e suas “necessidades”.

“Haverá sempre a prostituição”, dizem eles, para mais uma vez justificar suas pulsões sob o pretexto de liberdade de escolha das mulheres. É preciso ser muito ingênua(o) para não perceber uma inversão de termos: não é a liberdade das mulheres para se prostituir da qual de fala, mas da liberdade dos homens de prostituí-las.

Que liberdade é esta, das mulheres em estado de prostituição? Seus corpos não tem mais integridade, são decompostas em partes mais ou menos desejáveis; seu psiquismo não existe, tudo se passa como se estas mulheres estivessem ausentes de sua materialidade para suportar a invasão de seus corpos.

 Esta ‘liberdade” de escolha pode – tudo é possível – ser exercida por mulheres, extremamente raras, que consentem em ser tratadas como dejetos ou vasos sanitários Ou que apenas afirmam sua escolha e desejam a denominação “profissão” para criar um semblante da dignidade, que lhes é negada no simbólico na materialidade social.

ler mais em: http://www.tanianavarroswain.com.br/brasil/anahitapt.htm

Banalizar e naturalizar a prostituição: violência social e histórica

Banalizar e naturalizar a prostituição: violência social e histórica
Tania Navarro Swain

[texto publicado na revistaUnimontes Científica, revista da Universidade Estadual de Montes Claros, vol6,n2, julho/dez 2004.]

resumo:

A prostituição vem sendo apresentada pelo história como algo já existente desde os primórdios da organização social humana. Diferentes facetas do discurso social retomam esta idéia e justificam a prostituição, esvaziando-a de sua violência constitutiva. A prostituição transformada em profissão de fato legaliza a violência da apropriação material e simbólica dos corpos das mulheres.

A prostituição, ou seja, a venda de corpos, forçada ou não, é talvez a maior violência social cometida contra as mulheres. Esta violência é agudizada por sua total banalização; mais ainda, a profissionalização da prostituição, que acolhe adeptos mesmo entre as feministas, define a apropriação e a “mercantilização” total das mulheres como um trabalho, que seria tão estatutário e dignificante quanto qualquer outro.

 A simples classificação “trabalho” promove a compra de mulheres – momentânea ou permanente, como no caso das meninas raptadas, violentadas e prostituídas – a um nível de mercado, de justificação monetária, de inserção nos mecanismos de produção e reprodução do social. De fato, a prostituição é um agenciamento social onde a classe dos homens, como bem definiu Christine Delphy (1998), se apropria e usa a classe das mulheres.[1]

Os mecanismos de inteligibilidade social integram a prostituição, no imaginário e nas representações sociais, como um estado prazeroso, tal como o apresenta, por exemplo, a literatura, dentre os discursos sociais. Por exemplo, Jorge Amado, em muitos de seus romances: apresenta o prostíbulo como um lócus de troca amorosa, de repouso e prazer..Assim, não paira sequer a questão: para quem as mulheres são colocadas à disposição, corpos e ouvidos complacentes, perpétuos sorrisosenganchados no rosto, caricaturas de uma relação de encontro?

Aspirar à dignidade de um trabalho, enquanto prostituta, é totalmente compreensível, sobretudo quando não existem condições materiais para uma transição ou o abandono de tal atividade. Afinal, quem não deseja o respeito e a consideração social? Entretanto, mesmo se a legislação confere um status trabalhista à prostituição, a linguagem popular mostra seu lugar na escala social. Ser “filho da puta” não é ainda o insulto maior?

Diversas asserções tentam justificar a violência da transformação de pessoas em orifícios, como por exemplo, “a prostituição é a mais antiga profissão do mundo”. Esta frase é dita e escrita à exaustão, criando sentidos sobre o vazio de sua enunciação. De fato, em História, nada existiu “desde sempre e para sempre”, a não ser em uma história positivista, enredada em premissas essencialistas e datadas, para a qual é “natural” a presença de prostitutas no social. Ao contrário, a pesquisa histórica vem mostrando que a prostituição é uma criação do social, em momentos épocas específicas; esta denominação encobre, inclusive, no discurso histórico, a presença de mulheres no social que destoam da norma representacional sobre as mulheres.

Esta proposição – a mais antiga profissão do mundo –  cria e reproduz a idéia da existência inexorável da prostituição, ligada à própria existência das mulheres, parte de seu destino biológico; nesta asserção é mantida, no senso comum, a noção da essência maléfica e viciosa das mulheres, que através dos tempos se concretiza na figura da prostituta, o lado sombrio e negativo da representação construída sobre a mulher-mãe na historicidade discursiva ocidental. Por outro lado, fica materializada e generalizada a idéia da condição inferior das mulheres ao longo da história, despossuídos de seus corpos e de sua condição de sujeito, no social e no político.

              Delimitada pela noção de essência e permanência, a prostituição vai perdendo sua historicidade e a própria variação semântica da palavra desaparece sob generalizações no mínimo insustentáveis. Por exemplo, a “prostituição sagrada” na antiguidade dos povos orientais é uma interpretação anacrônica, pois insere em valores do presente – o sexo mercantilizado – a análise de um ritual simbólico de renovação da vida (Stone, 1979)

Explica esta autora que o  hierogamos – união sagrada  entre a grande sacerdotisa e o futuro rei, ou entre uma sacerdotisa e um visitante do templo – era uma celebração do ritual místico da vida, reproduzindo, na Suméria,  a união de Inana / Damuzi ou de Ishtar/Tamuzi, na Babilônia – fundamentou a idéia de  “prostituição sagrada”, ou seja, uma interpretação etnocêntrica, que confere ao rito uma desqualificação incompatível com a importância e o sentido conferido à cerimônia.

 Merlin Stone historiadora e arqueóloga, explica que as sacerdotisas dos templos da Deusa, seja na Suméria, Babilônia, Cartago, Chipre, Anatólia, Grécia, Sicília, eram consideradas sagradas e puras; seu nome acadiano de gadishtu significa literalmente “mulheres santificadas” ou “santas mulheres” (Stone, 1979: 237).

 Julgamento de valor, valores criadores de sentidos, sentidos instauradores do real na senda do imaginário social: assim se constrói a prostituição como atemporal, Se “o que a História não diz, não existiu”, como costumo afirmar, o que a história diz é certamente justificação para determinadas relações sociais. Nesta perspectiva, à asserção “prostituição, a mais velha profissão do mundo”, corresponde “as mulheres sempre foram dominadas pelos homens”, proposições construídas pelas representações sociais binárias e hierarquizadas dos historiadores, destituídas de fundamento.  Mas isto assegura, no discurso  e às condições de imaginação social, a representação das mulheres enquanto prostitutas e como seres dominados / inferiores, desde a aurora dos tempos conhecidos.

Sentidos múltiplos

Assim, a questão que se coloca é igualmente: o que é uma prostituta? Cada época tem sua definição e seus limites que vão desde a mulher que não é casada, daquela que tem um amante até a profissão que ela exerce, como até pouco tempo, no Brasil, as aeromoças, as cantoras, as mulheres que trabalhavam fora de casa. Se o termo contém uma suposta relação mercantil, a representação da prostituta atinge todas aquelas que não se enquadram às normas de seu tempo / espaço.

Simone de Beauvoir, que marcou a visibilidade dos feminismos no século XX com a publicação do “Segundo Sexo” (1949), assim analisa a condição da prostituta:“[…]a prostituta é um bode expiatório; o homem descarrega nela sua torpeza e a renega ”(Idem,376)e continua […]  a prostituta não tem direitos de uma pessoa, nela se resumem , ao mesmo tempo, todas as figuras da escravidão feminina”.(idem) A pertinência desta análise nos aponta para a inversão que institui e classifica a prostituição no mais baixo nível social, que pune e persegue a prostituta e não o cliente. A violência simbólica desta inversão não pune ou rejeitado socialmente os agentes da violência, os criadores de mercado: os clientes. A  quem serve afinal, a legalização da prostituição?.

Simone de Beauvoir considera que é na  prostituição, onde:

“[…]a mulher oprimida sexualmente e economicamente, submetida ao arbítrio da polícia, à uma humilhante vigilância médica, aos caprichos dos clientes, destinada aos micróbios e à doença, é realmente submetida ao nível de uma coisa”(idem,389)

. Estas frases contém um sem-número de questões: a prostituição como o resultado de relações sociais hierárquicas de poder; como resultado igualmente de uma situação moral; como objetificação total do feminino nas instâncias sexual e econômica, submetido  à ordem masculina ; como instituição partícipe do funcionamento do sistema patriarcal; como uma forma de violência e apropriação social das mulheres/ meninas/ crianças pela classe dos homens.

Meninas abandonadas pelos pais, pelos amantes ou maridos, falta de oportunidade de trabalho, falta de capacitação, sedução e exploração, escravidão sexual, medo, são causas arroladas por  De Beauvoir (idem:279/380) para a prostituição. Podemos acrescentar o abuso sexual doméstico, na escola, no trabalho, nas instâncias de lazer. No caminho da prostituição, o abuso e o estupro estão quase sempre presentes. Sob o signo do social se coloca  a existência da prostituição,  num contexto de violência implícita ou explícita, desmascarando “a mais antiga profissão do mundo”. Como bem analisa Colette Guillaumin(1978), as mulheres padecem de não TER um sexo, mas de SER um sexo, no imaginário patriarcal.

De Beauvoir comenta ainda a respeito da prostituição:

“[…] gostaríamos de saber a influência psicológica que esta brutal experiência teve sobre seu futuro; mas não se psicanalisa “as putas”, elas não sabem se descrever e se escondem sob os clichês”(idem, 380).

Esta questão é bem ilustrativa da banalização e naturalização da prostituição: as mulheres violentadas são usualmente encaminhadas para um acompanhamento psicológico; mas e as prostitutas? Ou elas realizam a improvável operação da separação de seus corpos e mentes quando exercem esta atividade, ou são apenas robôs, destituídas de psique, de sentimentos, de emoções.

 Dizer que a prostituição é um trabalho e ainda, voluntário, é, no mínimo, um insulto às mulheres, é um insulto ao trabalho, é o menosprezo total das condições que levaram tais mulheres a se submeter e mesmo defender a “profissão” que exercem. O que poderia levar uma criança, uma adolescente, uma mulher à este aviltamento senão a força, o poder, o estupro, a violência social que aceita a figura do “cliente” como seqüência de corpos profanados, usados e abusado, assujeitados, escravizados? Basta lembrar que o tráfico de mulheres só é superado em lucratividade pelo comércio das armas. Estariam todas estas mulheres e meninas nos bordéis e nas ruas, por sua livre vontade, presas de sua “natureza” perversa?

 A naturalização e a profissionalização da prostituição não é também uma forma de convencimento para as meninas / adolescentes? Porque não ser prostituta, “trabalho” “fácil”, para se ganhar muito dinheiro? Não se explica a elas o que vão constatar: a perda de sua condição de sujeito, de ser humano, entre surras e pancadas, na total insegurança, sem falar nesta intimidade, nesta troca de fluidos corporais, de odores, texturas, hálitos, suores, a invasão e a despossessão  de seus  corpos por qualquer indivíduo do sexo masculino? Como se ousa dizer que alguém quer ou gosta de ser prostituta?

 De fato, a prostituição é a banalização do estupro.

Um argumento bem atual é que a sedução exercida pela prostituta seria uma forma de poder sobre os homens: a mulher teria algo tão desejável que faria o homem se submeter a pagar por isto, diz a revista Nova em 1999. Mutatis mutandis, o patrão que paga um salário torna-se assim instrumento e posse de seu operário? Que estranha inversão é esta que  torna o comprador tributário do vendedor? Que tipo de raciocínio é este que seria destruído em segundos por qualquer estudante de economia e se sustenta na análise da prostituição?  De toda maneira, o dinheiro ganho pelas prostitutas raramente fica em suas mãos.

No estupro e na violência  material e psicológica encontram-se raízes da prostituição; no aliciamento para o mundo artístico, inumeráveis jovens desaparecem no tráfico  internacional de mulheres onde são vendidas e confinadas em bordéis; no apelo ao consumo e na falta de oportunidades de trabalho, na ausência de capacitação profissional e mesmo de alfabetização, outras passam a vender seus corpos, já que, afinal, não é este um destino “natural” para as mulheres?. Mas não só a ausência de condições materiais estimulam a venda de corpos: são as representações sociais sobre as mulheres, são as condições de imaginação social que asseguram a existência da prostituição, como algo banal e natural.

Estas são situações de fato, levadas em conta pelos feminismos quando se debruçam sobre a experiência singular das mulheres, colocando-se em sua defesa e proteção. Sob a égide da legalização da prostituição encontra-se, entretanto, um imenso mercado que mal disfarça seus interesses. A mercadoria é o corpo ou o sexo das mulheres e meninas. Por vários motivos, a prostituição não pode ser assimilada a um trabalho, a uma profissão: numa relação profissional ou mercantil, o que se vende é o trabalho ou o produto do trabalho. Na prostituição, o corpo das mulheres seria seu produto? Como ser força de trabalho e ao mesmo tempo seu produto?  Isto é a re-naturalização do sexo feminino, a sua transformação de ser humano em carne , cujo destino é a satisfação do  desejo de outrem.

Confundir prostituição e trabalho é dotá-la de uma dignidade que não possui no imaginário e na materialidade social – o linguajar popular exprime o desprezo social em relação à prostituta e nenhuma legislação irá modificar esta imagem: é a forma falaciosa  de justificar o completo assujeitamento das mulheres a seu corpo sexuado, mergulhando-as  na total imanência.

É a melhor maneira de perpetuar a prostituição, igualmente, na medida em que as próprias mulheres defenderiam sua profissionalização, para escapar ao opróbrio, às perseguições legais e à própria auto-representação, fincada num imaginário de degradação. Assim, descriminalizar é uma coisa e profissionalizar é algo muito diferente: descriminalizar é proteger as mulheres prostituídas do arbítrio legal e da exploração dos cafetões;  profissionalizar é  integrá-la ao funcionamento do mercado de trabalho, banalizando e normalizando a apropriação das mulheres pelos homens, na expressão paroxística da matriz heterossexual, na reafirmação do patriarcado enquanto sistema.

A prostituição é, portanto, uma instituição social que materializa a apropriação geral da “classe” dos homens em relação à “classe das mulheres”, (Guillaumin, 1978) historicamente constituída nas relações sociais e que tende a ser naturalizada. A prostituição enquanto “escolha” de uma “profissão” obscurece a profunda esquizofrenia do olhar lançado sobre as prostitutas, destituídas de toda perspectiva psicológica, capazes de cindir, no exercício da sexualidade, da “profissão”, seu corpo e sua mente, seu corpo e suas emoções.

 Evidentemente, os consultórios de psicólogos e psicanalistas estão repletos de mulheres e homens com problemas sexuais; as prostitutas, entretanto, não são afetadas por estas disfunções, já que se trata de um “trabalho”, de uma “escolha”. As imagens que são produzidas pela televisão, pelo cinema, pela literatura, mostram os bordéis como casas de alegre convivência, de felizes encontros, de doces recordações – para os homens – escondendo a sombria realidade de seres despojados de seu corpo e de sua humanidade.

Pequena questão final

A materialidade das relações sociais apela para um posicionamento político e a análise crítica é um dos vetores que pode rasgar as tramas dos discursos e suas práticas.  A História, enquanto discurso social também dotado de historicidade é uma das grandes veiculadoras de representações de mulheres naturalizadas: entre maternidade e prostituição, a escolha de um destino biológico. Os feminismos, atentos à sua própria produção do conhecimento, não podem senão negar a banalização da violência que prostitui as mulheres e afirma que elas assim o querem porque assim são feitas e constituídas.

Referências bibliográficas   

 DE BEAUVOIR, Simone. Le Deuxième Sexe. L’expérience vécue, Paris: Gallimard, 1966. (1a edição em 1949)

DELPHY, Christine. L´ennemi pprincipal. vol 1. Paris : Ed. Syllepse, 1998

GROULT, Benoite. Cette mâle assurance. Paris : Albin Michel, 1993

GUILLAUMIN, Colette. 1978.Pratique du pouvoir et idée de Nature, 2.Le discours de la Nature, Questions féministes, n.3, mai, p.5-28,

STONE, Merlin. Quand Dieu était femme. Quebec: Etincelle, 1979.

RICH, Adrienne. La contrainte à l’hétérosexualité et l’existence lesbienne, Nouvelles Questions Féministes, Paris, mars , n.1, p.15-43, 1981.

JODELET, Denise.  Les représentations sociales, un domaine en expansion. In :___ (dir)  Représentations sociales. Paris : PUF,  1989.


 


[1] Na linguagem  marxista de relações de classes, Delphy (1998) identifica na associação dos homens uma classe, que como tal se apropria das mulheres, também enquanto classe

“Neste 8 de março, queremos o fim da exploração sexual das mulheres!”

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Mulher não é mercadoria! Pela abolição da prostituição!

(Para ter acesso ao formato panfleto, clique aqui)

O projeto de lei Gabriela Leite do deputado Jean Wyllys (PSOL), se aprovado, legalizará a prostituição. Embora haja um mito de que a legalização beneficia as mulheres em situação de prostituição, na realidade a legalização só beneficia os cafetões e os consumidores.
Esse projeto considera que a prostituição é um trabalho que algumas mulheres escolhem livremente. No entanto, a voluntariedade dessa escolha não é real, uma vez que essas mulheres entram na prostituição por necessidades financeiras, por terem aprendido a ver seus próprios corpos como mercadoria ou por terem sido forçadas por um terceiro. É inaceitável que a prostituição seja equiparada a qualquer “prestação de serviços”. Ela é intrinsecamente uma apropriação do corpo das mulheres pelos homens, uma violência condizente com toda a exploração da sociedade patriarcal e capitalista em que vivemos.
Com a proximidade dos Megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas), é grande a pressão para que esse projeto seja aprovado. Insistindo numa falsa diferenciação entre prostituição e exploração sexual, o PL de Jean Wyllys visa facilitar o lucro dos cafetões durante esses períodos de grande procura por turismo sexual. Além de não dispor sobre formas de garantir a segurança das mulheres em situação de prostituição, a justificativa do projeto dá a entender que o tráfico sexual seria uma demonstração de ‘solidariedade’ (!) e propõe alterações no atual Código Penal, que considera crime manter casas de prostituição.
Devemos pressionar para que o governo pense nos interesses das mulheres e não no lucro dos cafetões ou na comodidade dos consumidores!
Defendemos um modelo abolicionista da prostituição:

1. Nenhuma criminalização às mulheres em situação de prostituição. Por políticas que promovam a saída das mulheres da prostituição e da marginalização social.

2. Por uma lei que criminalize a compra de qualquer ato sexual. Pela responsabilização e criminalização do consumo de sexo.

3. Por mais fiscalização e pela criminalização de qualquer forma de agenciamento, controle ou aliciamento na prostituição. Pela criminalização da cafetinagem, das casas de prostituição e das redes de tráfico sexual.

4. Por mais políticas sociais voltadas para as mulheres, por equiparidade salarial entre homens e mulheres e por políticas e campanhas de prevenção à prostituição.

comiteabolicaoprostituicao.wordpress.com

Documentário “Nosso Corpo nos Pertence”?

http://www.youtube.com/watch?v=UvS4hwSa8So

Vídeo da SOF sobre a prostituição, assertando a posição feminista de que a mesma é violência. Questiona o projeto do Jean Willys que busca regulamentar a prostituição, traz falas de mulheres saídas da prostituição, consideram a regularização como regularização de cafetões, rompem silêncio sobre violência que representa, localizam o papel masculino que torna possível a existência da mesma, dentre outras coisas.

Publicação “Prostituição: uma abordagem Feminista” pela SOF

“Resultado do esforço da SOF que, em sua atuação, tem buscado construir um feminismo que apresente uma visão integral sobre a opressão das mulheres, a publicação “Prostituição: uma abordagem feminista” pretende trazer elementos que contribuam para a compreensão da prostituição em seu papel estruturante no patriarcado. Recuperando o debate feminista sobre a sexualidade, a publicação aborda a maneira como a prostituição se consolidou em nossa sociedade, o que ela representa e a quem serve, interligando o tema da prostituição com o debate sobre raça e classe.”

baixar aqui.

fonte: http://www.sof.org.br/artigos/prostitui%C3%A7%C3%A3o-uma-abordagem-feminista

Sobre as conexões entre prostituição infantil e prostituição adulta, e porque não se deve separar uma da outra

Conexões entre abuso e prostituição infantil e prostituição adulta? Muitíssimo raramente uma pessoa em situação de prostituição o é depois dos 18 anos. Muito raramente as vítimas e sobreviventes não possuem histórico de abuso sexual infantil. O abuso e a vulneração social são fatores que preparam e são instrumentos do sistema proxeneta para produzir subjetividades requeridas pela prostituição (logo explicaremos mais sobre síndrome de estocolmo). Nos casos de prostituição dita e apresentada como ‘voluntária’, desconfie de histórico de abuso e repetição de sexualidade traumática derivada do mesmo. São muitos raros os casos de mulheres que são recrutadas (aqui não usaremos linguagens como ‘entraram na prostituição’ pois problematizamos voluntariedade e consentimento) que começaram nisso “depois dos 18” (a idade convencionada para a definição de adultez). Para haver prostituição adulta, se querere prostituição infantil. Adolescência e infância são momentos muito delicados e conforme contemplado no Estatuto da Criança e Adolescente, estes são prioridade máxima dos Estados e por estarem em fase de desenvolvimento, devemos sempre problematizar consentimento e ter em conta que ainda necessitam proteção e cuidados específicos, e que suas defesas são baixas em relação com as de um adulto. A prostituição e abuso infantis são vitais na produção da prostituição, apesar de que aqui evitaremos fazer distinção entre prostituição infantil e adulta, consideramos as duas formas de violação e que devem ser considerados crimes contra integridade humana. Não reivindicamos que somente se visibilize a prostituição infantil como se vem fazendo, mas que se a conecte com a realidade, de que está intrinsicamente conectada com a prostituição adulta, e de que pessoas adultas prostituídas foram um dia crianças prostituídas.

Manifesto Homens pela Abolição da Prostituição

publicado em 21 de outubro de 2009 por hombresabolicionistas

“A todos os homens pela igualdade entre homens e mulheres”

Nós, homens pela abolição da prostituição questionamos o modelo tradicional de masculinidade, baseado nas idéias de controle, dominação e rejeição dos sentimentos. Nos manifestamos a favor de uma sociedade totalmente livre de machismo e discriminação por razão de gênero. Por isso avaliamos a prostituição como uma manifestação de exploração sexual. Por tanto, no debate sobre o tema queremos contribuir com nosso ponto de vista:

– Defendemos que a sexualidade deve produzir-se em um plano de liberdade, igualdade e mútua correspondência, livre de hierarquias, dominação e mercantilização.
– Denunciamos a prostituição como uma modalidade de exploração sexual das pessoas prostituídas, em sua prática totalidade mulheres e meninas, e que contribui a perpetuar e a que se aceite socialmente a violência de gênero.
– Rejeitamos que a educação sexual de muitos se baseie na pornografia, indústria onde se reproduzem os mesmos esquemas de violência sexual que na prostituição.
– Para nós o “cliente”, o prostituidor é o principal responsável da mesma porque com sua compra permite que hajam mulheres que se possam vender e contribui a gerar relações sexuais de dominação.
– Consideramos que a regulação legal, sobretudo tal e como se planteia e com as escassas garantias para as “prostitutas” [1], beneficia as máfias dedicadas a prostituição, contribui a sua extensão e à aceitação social da mesma, e favorece a existência da prostituição infantil.
– Afirmamos que na atualidade existe uma quase absoluta inibição e tolerância por parte de políticos, juízes e forças de segurança frente a todos os que participam no negócio do sexo coisa que contribui a sua extensão e aceitação social.
– O modelo holandês de legalização da prostituição não contribuiu para a desaparição da mesma senão que a seu aumento. Porque quando se quer fazer desaparecer algo se o combate, não se o legaliza. O exemplo de Suécia onde há 4 anos que se aplica o modelo abolicionista, a prostituição e o tráfico de mulheres descenderam vertiginosamente.
– Consideramos que afirmações do tipo “sem a prostituição haveriam mais estupros”, “é a profissão mais antiga do mundo”, “é a única maneira de ter relações sexuais para muitas pessoas” são completamente inaceitáveis e ofensivas para os homens. Nós homens não temos desejos sexuais incontroláveis e incontrolados pelos quais sem pessoas em prostituição [2] somente podemos acabar estuprando. Esse tipo de argumentos somente pretendem justificar a relação de poder que supôe a prostituição e simplemente buscam defender os direitos dos exploradores sexuais.
– Rejeitamos as acusações de “moralismo” e “conservadorismo” com as quais se ataca a postura abolicionista desde diversas posições. Todos temos uma moral, mas nosso abolicionismo parte de uma análise feminista e do desejo de acabar com a violência sexual. Por outra parte, nossas posições não tem nada haver com o proibicionismo, não pretendemos penalizar à pessoa em prostituição [3] ou obrigá-la a abandoná-la. Os abolicionistas pretendem aplicar programas sociais de ajuda, alternativas e reinserção laboral para aquelas que voluntariamente queiram modificar sua situação.
-Para nós os únicos que merecem castigo são os traficantes de mulheres (que comerciam as mulheres como mercadorias sexuais), os proxenetas (que sacam proveito da exploração sexual) e em última instância os “clientes” pela utilização e “coisificação” do corpo da mulher. Não vemos delito na venda do corpo por parte das prostitutas, mas se na compra das mulheres e da consideração que dessa compra se deduz da mulher como mera mercadoria o serviço dos desejos do homem, e sujeitas à relação de poder que surge a partir da relação comercial e de quem paga.
-Pensamos que a sexualidade masculina e a masculinidade deve ser questionada (para poder abordar as relações com as mulheres em uma situação de plena igualdade). Que lhe falha à sexualidade masculina para crer-se com direito a comprar mulheres? Por que o “cliente” não aspira a ter uma relação igualitária com a mulher no âmbito sexual senão uma na qual esta relação seja de dominação? Acreditamos que tudo isso deve ser reformulado e, igualmente como fizeram as mulheres, devemos repensar nosso papel social e a essência da masculinidade para dar uma resposta adequada à atual situação de igualdade entre homem e mulher.

Por isso, nos opomos à regulação legal da prostituição, por supôr uma legitimação e normalização desta forma de violência sexual, e uma equiparação da mulher com a condição de uma mera mercadoria. Consideramos que as ações políticas devem ir encaminhadas de maneira urgente a:

– Eliminar as condições que possibilitam e favorecem a prostituição, o qual passa por políticas de igualdade de gênero e a luta contra o sexismo.
– Campanhas de prevenção, educação e sensibilização com o tema, instando aos homens a não comprar serviços sexuais.
– Perseguir imediatamente todas as modalidades de proxenetismo, mediem ou não consentimento da pessoa prostituída, em consonância com o Convênio das Nações Unidas para a Repressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição Alheia de 2 de dezembro de 1949, tal e como assumimos ao ratificar dito documento.
– Campanhas de educação sexual e afetiva desde uma visão da sexualidade igualitária, científica e livre de tópicos machistas.
– Incrementar os recursos dedicados a desarticular as redes de prostituição
– Criar um código ético que dissuada aos meios de comunicação de publicitar a prostituição.
– Incrementar suficientemente os recursos destinados ao desmantelamento das redes de prostituição que operam em nosso país com mulheres traficadas.
-Contribuir com planos sociais à reinserção social e laboral das prostitutas que queiram livre e voluntariamente abandonar sua situação. Oferecer opções laborais às prostitutas para sua inserção social.

Consideramos que, embora a prostituição homossexual possua características diferentes da prostituição heterossexual, é também uma forma de exploração sexual. Por isso, chamamos aos homens heterossexuais e homossexuais a comprometer-se de maneira ativa na luta contra a prostituição. Como principais clientes da prostituição os homens têm a responsabilidade de gerar as condições para sua desaparição: sem homens dispostos a pagar não haverá como exitir comercio de sexo.

HOMEM, AS MULHERES E OS HOMENS [4] NÃO SÃO MERCADORIAS, NÃO OS COMPRES! COM ISSO VOCÊ CONTRIBUI À EXPLORAÇÃO SEXUAL

http://hombresabolicionistas.wordpress.com/

[1] As aspas são minhas, pois considero que o termo ‘prostituta’, ‘prostitutas’, deve ser sempre evitado, já que ele responsabiliza as mulheres fazendo aparecer que é uma prática voluntária. (N. T.)
[2] Estava escrito novamente ‘prostitutas’ e escolhi adaptar no texto para pessoas prostituídas ou em situação de prostituição, de modo a não naturalizar essa identidade nem responsabilizá-la sobre as vítimas. (N. T.)
[3]Idem
[4] Creio que faltou aqui mencionar, crianças, já que tráfico e prostituição estão bastantemente indissociáveis da prostituição infantil. Pessoas em situação de prostituição são geradas por meio do abuso infantil e da prostituição infantil, sendo raros os casos em que as pesssoas prostituídas principalmente as mulheres não tenham começado antes dos 18 anos nisso, e quanto a homens e travestis em situação de prostituição, bastante difícil principalmente no caso dos primeiros, não duvidar de que tenham histórico de abuso sexual infantil e quando aparece como voluntária, desconfiar de que é certo que o que está em jogo é a repetição de uma sexualidade traumática devido ao abuso infantil (N. T.)

Papel dos meios de comunicação na criação de cultura de prostituição e na produção do discurso do proxenetismo

Todo ano, há lançamentos de filmes, livros (geralmente logo convertidos em best-sellers momentâneos), séries, novelas, que retratam mulheres na prostituição. Qual a função e o papel que desempenham os meios de comunicação no momento de justificar essa violação de direitos humanos, naturalizar prostituição e reforçar mitos sobre a mesma?

A mídia e o cinema, as novelas são as principais aliadas no momento de construir o discurso do proxenetismo – aquele que diz que a prostituição é uma escolha, empoderante, voluntária e glamourosa. A mídia, o cinema, os romances, produzem um discurso sobre a prostituição que beneficia e protege, autoriza o privilégio masculino de acesso aos corpos das mulheres, e que individualiza e até mesmo coloca a prostituição como uma transgressão moral por parte das mulheres. Essa visão distorce a realidade da prostituição constrói e reforça os mitos da prostituição e servem como veículo para favorecer o discurso cultural que naturaliza e torna aceitável o proxenetismo. É o discurso que vem sendo reproduzido na sociedade e que contribui para legitimar a prostituição. É preciso desfazer esse discurso e mostrar como ele está ancorado no Patriarcado.

Por exemplo, na reportagem sobre este filme recente, premiado em Cannes pelo que consta, diz:

“Garota de 17 anos que mergulha na prostituição sem motivo aparente”
Ou seja, a culpabilização da vítima, reincidente nos filmes.
Erotizando a prostituição de pessoas, a apresenta como voluntária e culpa da pessoa que é consumida, construindo a imagem misógina da prostituição, erotizando abuso infantil, apoiando este, glamourizando e apresentando como rebeldia pessoal como forma de respaldar a prática de clientes e desresponsabilizar homens, ajudando a instaurar a cultura de consumir pessoas.
A cultura de prostituição demanda pessoas traficadas, pessoas que caiam nas redes de prostituição. Embora atravesse todas classes e idades, não serão ‘jovens e ricas’, serão principalmente negras e pobres, de 3o mundo. Não se cai na prostituição por acaso. Há uma rede de facilitadores, há um processo de recrutamento, a prostituição livre é uma ilusão que beneficia proxenetas. Todo o terreno da prostituição e da indústria sexual geral é organizado e corporizado pelos homens que dela a lucram.

Recuse a ‘arte’ enquanto forma de construir discursos que contribuam para a injustiça social. Demandemos a produção de uma arte que esteja alicerçada em éticas de construir um mundo igualitário e que produzam referências positivas para a criação de uma sexualidade da igualdade.

Princípios Abolicionistas

retirado e adaptado de Prostitución: Punto de Encuentro entre la Explotación Económica y la Explotación Sexual (Prostituição: Ponto de Encontro entre a Exploração Econômica e a Exploração Sexual)

Princípios Abolicionistas

Eixo 1 – Sobre as pessoas prostituídas

– Suprimir toda medida repressora contra as pessoas prostituídas e toda obtenção de lucro sobre os ganhos delas.

– Implementar políticas críveis de alternativas à prostituição para todas as pessoas que desejem escapar do aprisionamento da prostituição.

– Promover políticas de prevenção da prostituição e de educação para uma sexualidade que seja respeitosa à de um terceiro.

– Suprimir a condicionalidade das permissões de residência às pessoas prostituídas estrangeiras.

Eixo 2 – Sobre os consumidores de prostituição

– Inscrever na lei a proibição de toda compra de um ato sexual.

– Promover campanhas de responsabilização e dissuasão dirigidas aos clientes da prostituição.

– Promover políticas de prevenção da prostituição e da educação no respeito aos demais.

Eixo 3 – Sobre os proxenetas

– Condenar todas as formas de proxenetismo e opôr-se à sua despenalização.

– Exigir a restituição dos fundos do proxenetismo.

Eixo 4 – Sobre a sociedade

– Implementar políticas de prevenção da prostituição.

– Promover uma educação para a igualdade entre mulheres e homens.

– Informar sobre os alcances da prostituição e desmantelar os estereótipos.