Documentário “Nosso Corpo nos Pertence”?

http://www.youtube.com/watch?v=UvS4hwSa8So

Vídeo da SOF sobre a prostituição, assertando a posição feminista de que a mesma é violência. Questiona o projeto do Jean Willys que busca regulamentar a prostituição, traz falas de mulheres saídas da prostituição, consideram a regularização como regularização de cafetões, rompem silêncio sobre violência que representa, localizam o papel masculino que torna possível a existência da mesma, dentre outras coisas.

Carta Aberta de Sobreviventes

Traduzido de Abolish Prostitution Now – Alliance of Women for the Abolition of Prostitution

Faça download do texto aqui.

Original em

http://abolishprostitutionnow.wordpress.com/survivor-testimony/

A carta abaixo é uma versão a qual será enviada às Nações Unidas e ao Conselho da Europa em breve. Enquanto isso, será aqui disponibilizada para que, assim, as mulheres que quiserem assinar estarão livres para fazê-lo. Todas as mulheres as quais foram prejudicadas em sistemas de prostituição são bem-vindas e encorajadas a assinar, independentemente de elas terem ou não se assumido publicamente como sobreviventes, de onde vieram ou de como elas se identificam em termos de ter sido prostituída e/ou traficada.

Carta-projeto de Sobreviventes do comércio sexual às Nações Unidas e ao Conselho da Europa

Nós, sobreviventes do comércio sexual as quais subscrevemos este documento, assim o fazemos em desafio à noção enganosa de que prostituição e tráfico sexual sejam fundamentalmente diferentes. Não o são, e o saberíamos, dado que algumas de nós são sobreviventes de prostituição, algumas de tráfico sexual, e algumas, crucialmente, de ambos. Muitas de nós cujas experiências se ajustam ao termo “prostituição” foram exploradas lado a lado com aquelas de nós cujas experiências se ajustam ao termo “tráfico sexual”, tanto nas ruas como em bordéis. Existem ainda dentre nós aquelas que foram primeiramente exploradas na prostituição por tráfico sexual e, mais tarde, no que é comum e erroneamente conhecido como prostituição “livre”.

Em suas posições de legisladores que estão considerando propostas para descriminalizar a prostituição, vocês devem pesar se devem ou não facilitar a normalização de sexo prostituído como trabalho. Nós sabemos que elel não o é; sabemos que se trata de abuso sexual indenizado. Demandamos, nesta carta aberta, que vocês, nas Nações Unidas e no Conselho da Europa, primeiramente considerem e então compreendam a verdadeira natureza do que acontece às mulheres e meninas no comércio sexual. Algumas são prostituídas diretamente devido às duras coerções das circunstâncias de vida, frequentemente levadas a crer que o comércio sexual oferece algum grau de autonomia ou escape. Outras são enganadas de uma forma muito mais coercitiva fisicamente; porém uma mulher que tenha sido traficada é em última instância também prostituída, uma vez que a prostituição é o objetivo último do tráfico sexual.

Prostituição e tráfico sexual estão intrinsecamente ligados. Eles sempre estiveram e, enquanto o mundo aceitar a opressão da prostituição, sempre estarão, dado que o tráfico sexual é apenas uma conseqüência desse sistema. É simplesmente uma forma de coerção ostensiva que responde à demanda masculina por sexo pago. A demanda por prostituição é o motivo pelo qual o tráfico sexual ocorre, e os bordéis são os lugares nos quais o tráfico sexual culmina. Nós, mulheres e meninas prostituídas e traficadas, existimos lado a lado e somos exploradas lado a lado, e nós não somos pessoas que vocês podem simplesmente categorizar como livres ou forçadas. Nossas liberdades foram cerceadas de formas diversas, certamente, mas, por favor, desistam da crença de que nossa opressão seja, em si, diferente. Não reivindicamos, como vocês reivindicam, que nossas experiências sejam diferentes – afirmamos que, no que mais importa, elas são a mesma – e temos o direito de fazer essa afirmação dado que nós vivemos aquilo que vocês discutem. Quando vocês recomendam legislar de uma forma que nos divide, vocês nos ignoram, e nós não mais estamos preparadas para sermos ignoradas.

Algumas de suas declarações públicas sustentaram e acreditaram na falsa suposição de que aquelas de nós que foram prostituídas através das rotas tradicionais de pobreza e destituição não podem ser comparadas àquelas de nós que foram prostituídas através do tráfico sexual. Vocês estão errados. Por favor, aceitem que vocês cometeram o natural erro humano de estarem enganados; e, por favor, lembrem-se, acima de tudo, que nem todas as correntes são visíveis, ou tangíveis, e que, às vezes, as amarras que nos prendem mais fortemente não são discerníveis ao olho humano.

Deixem-nos garantir-lhes que aqueles que lucram com o comércio sexual tampouco se encaixam – não mais do que as pessoas que eles exploram – em categorias estreitas e bem definidas, e que muitos deles agem tanto como “proxenetas” quanto “traficantes”. Garantimos ainda que homens que pagam por sexo usam mulheres e meninas traficadas e prostituídas indiferentemente, e, desde que não vêem mulheres e meninas como seres humanos, eles não se preocupam com as circunstâncias dos “corpos” que eles exploram.

Uma segunda questão, porém muito próxima [do que é aqui tratado] que gostaríamos de levantar é o uso, por vocês, do termo “trabalho sexual”. Durante muito tempo, aqueles nas Nações Unidas, no Conselho da Europa e em todos os lugares têm ouvido exclusivamente aqueles que nomeiam o abuso que vivemos como “trabalho sexual”. Afirmamos que não há “trabalho sexual”; que sexo não é trabalho, que nunca foi e nunca será.

Por favor, estejam cientes de que o termo “trabalho sexual”, que é encontrado em suas políticas públicas e documentos, originou-se no comércio sexual dos Estados Unidos dos anos 1970. Ele foi inventado com o objetivo particular de normalizar e sanitarizar a prostituição para o público e, particularmente, para os legisladores, e vocês prestaram um grande serviço àqueles que lucram com a prostituição por meio da aceitação e adoção deste termo. Simultaneamente, vocês também – inadvertidamente, nós reconhecemos – lançaram uma dolorosa injúria contra nós. Nós somos, todas nós, sobreviventes do comércio sexual; as testemunhas vivas de um comércio desumanizante, e qualquer aceitação do nosso abuso como “trabalho” também nos desumaniza.

Agora, deixem-nos dizer a verdade sobre este termo e sobre aquilo que ele é projetado para ocultar: o que é comprado em sistemas de prostituição não é sexo; é o direito ao abuso sexual. O que sistemas de prostituição oferecem é simplesmente a comercialização do abuso sexual. É hora de aqueles em posição de poder legislativo ouvirem aquelas de nós que viveram as realidades brutais da prostituição e do tráfico sexual, e de se referirem a nós coletivamente sob o termo “sobreviventes do comércio sexual”.

Por favor, ouçam-nos quando dizemos que uma dicotomia intencional foi construída, uma que pretende nossa (falsa) separação em dois conjuntos de mulheres, vivendo dois tipos supostamente diferentes de experiência; uma livre, outra forçada; uma escolhida, outra abusiva; uma inofensiva, e outra um horror contra a humanidade. Nós pedimos que vocês compreendam que a percepção de que mulheres prostituídas e traficadas são diferentes é ilógica: não faz sentido distinguir entre a prostituída e a traficada, uma vez que as traficadas o foram com o objetivo mesmo de serem prostituídas, e que esta é a realidade que elas então viverão.

Assim como ilógica, esta falsa distinção é também perigosa. É perigosa porque oferece o dom da camuflagem. Isso permite que proxenetas e traficantes ocultem a verdadeira natureza de suas ações, ajam sob o manto do sigilo e, consequentemente, com impunidade.

Nós exigimos:

  • Que vocês deixem de se referir ao abuso da prostituição como “trabalho sexual”.

  • Que vocês deixem de separar a prostituída e a traficada em suas percepções, e que suas políticas e posições daí em diante reflitam esta mudança de pensamento.

Vocês têm carregado a grande responsabilidade de dividir fato e ficção; de enxergar a desigualdade que se apresentaria como igualitária; de revelar a injustiça onde esta se disfarçaria como justa, e de eliminar o que é errado onde isto aparenta disseminar-se entre o que é correto. Esta é uma imensa, difícil e pesada tarefa, e nós não os invejamos no empreendimento desta; mas vocês têm de arcar com ela. É o seu dever.

Nós cumprimos com o nosso dever aqui, uma após a outra, país após país, muitas de nós renunciaram às nossas identidades pessoais e enfrentaram a ampla punição do escárnio público para revelar a verdade sobre a opressão do comércio sexual global. Nós fizemos este sacrifício a grande custo pessoal, para nós e para nossas famílias, porque estamos determinadas a extrair a fonte da verdade que reside em cada uma de nós e a afirmar publicamente o que sempre foi conhecido mas raramente proferido: a prostituição é, em si, uma violação dos direitos humanos.

Nós pedimos apenas que vocês nos ouçam e que façam, também, os sacrifícios necessários para fazer o que vocês sabem que é correto.

Cherie Jimenez – Boston, Estados Unidos

Autumn Burris – California, Estados Unidos

Rosen Hitcher – Saintes, França

Laurence Noelle – Paris, França

Bronwen Healy – Queensland, Austrália

Rachel Moran – Dublin, Irlanda

Justine Reilly – Dublin, Irlanda

Roak Elthea – Montevideo, Uruguai

Jacqueline S. Homan – Erie, PA, Estados Unidos

Josie O’Sullivan – Limerick, Irlanda

Bridget Perrier – Toronto, Canadá

Linda O’Keefe – Dublin, Irlanda

Vednita Carter – Minneapolis, Minnesota (Estados Unidos)

Tanja Rahm – Dinamarca

Debra Topping – Fond du Lac Indian Reservation, Cloquet, Minnesota (Estados Unidos)

R. B. – Nord, Canadá

David Zimmerman – Benton, PA, Estados Unidos

“A Prostituição É Violência”

Imagetradução de entrevista a Sonia Sánchez, ativista argentina
autora do livro “Ninguna Mujer nace para Puta”, escreve no blog qualestuputaesquina

baixe a entrevista aqui

Sonia Sánchez vem da Bolivia, lá esteve dando oficinas e apresentando o livro “Ninguna Mujer Nace para Puta” (traduzivel como “Nenhuma mulher nasce para puta”) que escreveu junto a Maria Galindo de Mujeres Creando. O encontro tardou, mas quando finalmente se deu, a história de Sonia e suas reflexões surgiram com uma claridade que a cronista decidiu que falem por elas mesmas.

“Vim a Buenos Aires, desde o Chaco, para trabalhar como empregada doméstica, com quase 20 anos. Sem conhecer absolutamente nada, assim que os patrões foram me esperar em Retiro, e aí me levaram a Floresta (bairro de Buenos Aires). Estive quase 8 meses, manejava a casa, o subsolo, primeiro e segundo andar; muito grande e era eu para tudo. Me levantava às 5:30 da manhã e ia dormir às 1:30 da madrugada. Tinha que preparar o café da manhã para meus patrões, dar banho nas crianças, levar eles à escola, e depois limpar toda a casa.

A questão é que eu sempre gostei de ler, deixei de estudar para trabalhar. Nos domingos, que eram os únicos dias livres que eu tinha, eu lia o jornal. Lia tudo, até os classificados e me dei conta que não chegava a cobrar nem a quarta parte do salário que anunciavam ali. Deixei passar assim um mês. Um dia me sento com meus patrões e lhes digo ‘Olha, eu preciso que me aumentem porque estou mandando dinheiro a Chaco, e além disso eu leio e não estão me pagando o que me corresponde.’ Eles muito tranquilamente me disseram: ‘Olha, se quiser esta vai ser sua remuneração, nós não vamos aumentar’. Acreditavam que eu ia seguir aceitando porque não tinha nenhum familiar aqui, nenhum conhecido, e a onde iria. Então lhes disse que buscassem a alguém porque eu me iria. Não sabia a onde, cada vez que saía ia com uma livretinha anotando porque não conhecia nada. Logo em seguida, conseguiram outra pessoa e eu me fui. O mês inteiro de pagamento me alcançou para quinze dias em um hotel de quinta, e deixei alguma coisa de dinheiro para comprar o jornal. Aí me dei conta que não tinha nenhuma referência para conseguir trabalho. Podia falar muito bem, podia pedir que me coloquem a prova, cuidar a senhoras, cuidar crianças, limpar pratos. Mas ninguém me deu trabalho porque não tinha referências. Terminei dormindo em Praça Once. Estive uns cinco meses dormindo aí. De dia dormia no trem de Once a Moreno; e de noite, o monumento ainda não estava cercado por grades, e me acomodava em um cantinho mas passava acordada pelo medo. Toquei portas por todos lados, fui ao exército da salvação, porque queria me lavar para seguir buscando trabalho. A marginação é uma cadeia. Tinha que ter um peso, dois pesos, para tomar banho ou dormir aí. Eu lhes dizia ‘estou dormindo em Praça Once, não me podes pedir um peso porque eu nã tenho’. Recolhi a comida dos tachos de lixo, mas não dava mais. Não dava mais a fome, o medo que sentia, de não ter um teto e poder descansar bem. E além disso, a humilhação que me faziam passar as mulheres, que ainda hoje seguem limpando os banheiros da estação, porque as vezes me encostava no sofá e não me deixavam dormir. Estava muito desesperada. Nesses quase cinco meses via a essas mulheres, mas eu sempre estive na minha nuvem. Venho de uma família muito pobre, mas minha mãe sempre nos fez estudar. Ela limpava uma casa, esfregava em outra, e nós o único que faziamos era estudar. Eu estava no meu mundo de estudante, não sabia o que era a prostituição, não sabia o que era uma travesti. Não conhecia nada deste mundo. Eu o que via eram essas mulheres, aí paradas que se arrumavam, iam e vinham, mas não sabia nada.

Um dia me aproximei e disse a uma delas ‘olha, eu me chamo Sonia Sánchez, estou dormindo na praça, não posso mais’. O único que tinha era uma carteira e o único que salvei foi meu documento. Lembro de seu rosto, era uma mulher de uns quase 50 anos, e me disse ‘olha, eu faço isso, você é jovem’, claro eu tinha apenas 21 anos. ‘Ollha, eu te dou uma grana, você anda a comprar um shampoo, um creme condicionador e vem; apenas vão acercar-se a você’. E depois não lembro bem, foi minha maneira de defender-me. Sei que fui ao chuveiro, me arrumei, me banhei, me pus uma roupa bonita. E aí fui ao primeiro passo, como se diz, não lembro quanto durou, se foram quinze minutos, três horas ou dez horas. Essa foi a segunda relação que tive. Deve ser tão traumática que por isso eu não a lembro. Depois não sei quantas horas posso ter estado debaixo do chuveiro. Quando volto em mim de novo, sei que tenho que voltar a fazer isso para ter um teto no dia seguinte.

Fui prostituída cinco anos da minha vida. Nunca o vivi como um trabalho, sempre vivi como uma violência. E isso posso discutí-lo com quem seja. A prostituição não é um trabalho, é violência que se exerce contra o corpo das mulheres, além disso é violência psíquica. É terrível. O corpo pode perder a memória mas aqui na cabeça fica. Me pergunto se ser estuprada é trabalho, se ser manuseada é trabalho, se ser violentada sistematicamente é trabalho. A cada quinze minutos, a cada hora; ISSO é trabalho? Porque isso é a prostituição. Ser esfomeada é trabalho? Isso não é trabalho. É violência. A prostituição tem um único idioma: violência.”

MULHERES EM SITUAÇÃO DE PROSTITUIÇÃO

Já havia deixado a prostituição depois de quatro anos. Volto ao Chaco, me compro uma casa, ponho um negócio de roupa. Em um mês me roubam cinco vezes e não logro me reerguer. Volto à rua humano más e aí se completam cinco para poder pagar advogados e todas essas coisas. Aí é quando fico para viver em Buenos Aires. Conhecia às mulheres, aos calabouços da Comissaria 50, ou do asilo San Miguel onde estavamos 21 dias detidas. E sempre me insistiam ‘Sonia você tem que vir à organização’. Um dia fui e comecei a aprender o que era a organização, quer era AMMAR, aprendi alguns direitos, comecei a conhecer o que era a CTA1 por dentro.
E depois, foram passando coisas muito fortes, e em 2000 começaram a meter a gente nessa coisa de “trabalho sexual”.
Nós as putas somos absolutamente mentira, não há uma parte da puta que seja verdade. A puta dorme em um colchão de mentiras, todo o tempo, porque senão não poderia suportar nada. E compra todos os versos. Eu comprei o de trabalhadora sexual quando estava dentro da CTA. Me apresentava assim e nunca me pus a pensar por quê. Só que a mim me aliviava, eu estava maquiando uma realidade. Nós mesmas jamás discutimos se isso era trabalho ou não. Para as pessoas da CTA, ‘Você É TRABALHADORA, você é COMPANHEIRA’.

Quando armam uma reunião para fazer o sindicato legal, estava tudo preparado, até de Genaro2 nos estava esperando, faltava a nossa firma. E aí entramos em pânico, nunca o havíamos discutido entre as putas. Não posso discutir se a prostituição é trabalho ou não com um sindicalista, quando o cara é um prostituinte3.Começamos a ver como discutir com as mulheres da rua. E quando discute com as putas da rua, todas nos pedem trabalho. Te estão dizendo que isso não é trabalho. Quando vão buscar sus filhes na escola, não dizem ‘sou trabalhadora sexual’, dizem ‘cuido a crianças, cuido a idos*s, sou uma mulher desocupada’.

Então por quê sindicalizar? Por quê legalizar, ou branquear4 algo quando vai seguir sendo tapada? Lhes vai fazer jogo ao governo, a três ou quatro proxenetas que viajam pelo mundo com esse verso e que não param nunca em uma esquina e vivem das que siguem na rua. Isso de trabalho sexual é um discurso fracassado.

Com essa postura no ano 2002 me expulsaram da CTA. Era um lugar onde as putas não tinhamos decisão própria. Aí armamos AMMAR Capital. Começamos sozinhas a trabalhar, as reuniões as fazíamos na cozinha da minha casa, e depois a Igreja Metodista do bairro de Flores nos deu um lugar para compartir a caixa de mercadoria. Era em 2001, todas passávamos muita fome. Estavamos sentadas no solo e a pergunta era ‘Quê somos?, quem somos? A onde vamos?’. Nos acabavam de expulsar de um espaço ‘progressista’ por não querer que nos imponham uma identidade. Quê somos se não somos trabalhadoras sexuais? Não podíamos pronunciar a palavra prostituta. Nos queimava. Mas antes que isso, eu perguntava, quê somos? O já havíamos nascido prostitutas? Não. Uma dizia mãe. Não, antes que isso somos mulheres. Foi toda uma tarde até que pudemos dizer a palavra mulher”.

Então decidimos apresentar-nos como mulheres em situação de prostituição.

Em 2006 eu renunciei a AMMAR Capital. Por que temos que distribuir camisinhas? Nos vendem o discurso de que é para que as putas se cuidem. É mentira, é para que o prostituinte não se enferme, quando ele é o que infecta a você. Que passava quando dizíamos que a prostituição não é trabalho? Queremos trabalho. Não temos educação, queremos educação. Pedíamos essas duas coisas e o governo nos respondia com 7000 camisinhas e 240 cestas básicas por mês.

Queríamos micro-empreendimentos, a puta não tem a cultura do trabalho, tem a cultura da exploração. Havíam anotadas 50 e nos dava para 10. Aprendiam a fazer coisas, mas para vender onde. Se as vendiam na rua, te perseguíam como aos vendedores ambulantes. Tínhamos um espaço que se chamava ‘espaço mulher’, era todas as quartas e debatíamos sobre o tema da violência intra-familiar e institucional, chegamos a nomear ao marido como cafetão, a dizer que éramos violadas quando não tinhamos vontade de fazer sexo. Três cafetões participaram de algumas reuniões porque as mulheres os traziam para que escutassem. Foi um espaço muito forte, muito enriquecedor, que se acabou quando caíram duas de nossas companheiras, Marcela Sanagua y Carmen lfrán, presas pela legislatura.

MUJERES CREANDO

Em 2006, María Galindo faz uma mostra, “Nenhuma Mulher Nasce para Puta” (Ninguna Mujer Nace para Puta), e me convida. Trazemos essa mostra a Argentina, ao Centro Cultural Borges, e por aí passaram mais de 5000 pessoas. Aí começamos a desenhar as fronteiras do Patriarcado para que existam as boas e as más. A iniciativa nasceu desde a puta. Aí tivemos voz própria desde um lugar não permitido. Não era a rua, nem o bordel. E aí operaram os parasitas, os que vêm a ajudar mas que em realidade te expropriam a sua luta. Operaram no pior de nós, termina a mostra, e AMMAR com uma ruptura. Para mim a Organização tinha sentido para pensar-nos e pensar, correr-nos de lugar. Diga trabalho ou diga “situação de prostituição”. Eu não me organizei para seguir estando presa.

Os guetos são um fracasso. A puta tem um roteiro oficial que é o da AIDS, IPS5 e camisinha. A puta discute sobre economia, política ou educação? Está com a goela cheia de camisinhas! Seus interlocutores são outras putas e o cafetão. É um mundo muito pobre.

Em troca se você se organiza com outras mulheres teu mundo cresce, se faz muito mais rica a discussão.

Agora estou em Lavaca que é uma cooperativa de jornalistas, embora não sou jornalista me abriram esse espaço. Formamos um grupo que se chama Las Locas. É uma palavra que nos dizem às mulheres para desqualificar-nos. E desde a loucura você pode criar. Há jornalistas, há uma puta, tem profesoras, uma estudante, diversos mundos de mulheres que não temos medo de dizer o que sentimos, de fazer um escrache e de sustentar um debate político sobre nós mesmas nessa sociedade. Começamos este ano em um Congresso de HIV AIDS de America Latina e Caribe. O organizaram as trabalhadoras sexuais da CTA e vieram de Brasil e outros países, muito dinheiro. Cobravam 250 dólares para entrar.

Fizemos um panfleto que dizia “enquanto vocês falam as putas seguem se infectando”. E disso não falam. A camisinha que te dão o saca o prostituinte6 com 5 pesos mais. Te prostitui a fome por 15 pesos, o prostituinte te dá 20 mas tira a camisinha. Com a fome não há negociação possível. Devemos discutir isso, mas não entre as putas, não se pode mais meter mais culpa a essas mulheres. Essa mulher que não usou a camisinha, não vem ao outro dia dizer ‘olha eu não usei’porque lhe dá vergonha, porque no dia anterior e no anterior e no anterior te vêm escutando como ao papagaio.

Tem que discutir com o Ministério da Saúde, com as ONGs porque isso não serve.
Hoje ao SIDA custa 5 pesos para entrar na sua vida. Não se discute ao fundo o tema da prostituição. Se fala na zona vermelha, das travestis, das putas; mas nunca do prostituinte7.Ao que consome, ao homem que busca nunca se o coloca em questão. Nem sequer às organizações de putas. O cafetão, a polícia e o prostituinte estão os três no mesmo nível. É uma cadeia de exploração. Isso as organizações de putas não o questionam. E tampouco questionam o lugar das mulheres nesta sociedade, que eu não chamo de patriarcal, que eu chamo de Estado Proxeneta. O lugar sexual nosso como objetos sexuais, por isso digo todas temos cara de putas. Toquemos mais a fundo, toquemos o corpo, toquemos a tudo isso.

1 Sigla para Central de Trabalhadores Argentinos, uma central sindical (seria equivalente a CUT no Brasil, Central Única d*s
Trabalhador*s).

2 Prostituinte aqui seria a tradução feita para designar aquele que prostitui. Segundo a compreensão abolicionista, o termo ‘cliente’ é uma maneira de naturalizar essa relação social. A pessoa que se beneficia do uso do corpo de uma pessoa que é
prostituída para sua própria satisfação está prostituindo essa pessoa e não ‘consumindo’, a existência da demanda possibilita que exista a exploração sexual chamada socialmente de ‘prostituição’.

aqui se refere a ‘trabalhar em branco’, ou seja ter carteira assinada. O contrário seria na argentina, ’trabalhar em

negro’, ou seja, em situação ilegal e não reconhecida, sem direitos garantidos como seguro saúde ou desemprego.

4 O ‘cliente’, no caso.

5 Novamente, nunca custa lembrar, o tal cliente de prostituição ou explorador sexual com dinheiro

Linguagem

Texto-fonte:
RAYMOND, Janice G. Language. In: Not a Choice, Not a Job: Exposing the Myths About
Prostitution and the Global Sex Trade. Dulles, Virginia: Potomac Books, 2013. p. xli-xliii.

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A realidade se suspende no esguio fio da linguagem. As conclusões alcançadas relativas à prostituição frequentemente residem nas palavras usadas para descrevê-la. Por exemplo, termos tais como “trabalho do sexo”, “sexo com garotas”, “sexo transacional” e “prostituição infantil” não lançam luz no que acontece às mulheres e crianças em situações de exploração sexual. Maneiras educadas e confortáveis de descrever a violência sexual, a exploração e a predação nos vacinam do dano da prostituição para mulheres e crianças. Garotas trabalhadoras, moças da noite e acompanhantes são termos alegres e mascaram o que é essencialmente uma cruel, sórdida e perigosa indústria, ofuscando os proxenetas, os usuários da prostituição e outros perpetradores.
Trabalhadora do sexo e trabalho do sexo são termos que eu não uso porque tais termos funcionam para endossar a visão de que a prostituição é e deveria ser normalizada como simplesmente outra forma de trabalho. Muitos indivíduos e organizações acreditam que os termos “trabalhora do sexo” e “trabalho do sexo” dignificam as mulheres. Em minha experiência, eu aprendi que esses termos servem principalmente para dignificar a indústria do sexo ao dar mais legitimidade a compradores, proxenetas, recrutadores e outros perpetradores-chave da exploração sexual do que eles poderiam de outra maneira obter. Ao invés disso, uso termos como “mulheres e pessoas em prostituição”, “em sistemas de prostituição” e aquelas que são “prostituídas” no interior da indústria do sexo.
Os defensores da indústria do sexo são afeiçoados a distinguir a legalização da descriminalização. Eles argumentam pela descriminalização da prostituição, sustentando que a indústria da prostituição deveria ser free-flowing e não sujeita a qualquer regulação estatal. No entanto, as consequências da legalização e da descriminalização são similares. Ambas legalização e descriminalização tornam aspectos da indústria do sexo legais, ou seja, ao não as tornar ilegais.

Prostituição (5)

Legalização da prostituição significa que o Estado torna partes do sistema de prostituição legais ao regulamentar a prostituição e a indústria do sexo através de, por exemplo, registro de mulheres em locais de sexo, monitoramento da saúde, localização de bordéis e tributação.
Descriminalização da prostituição significa a eliminação das penalidades para todos ou certos aspectos do sistema de prostituição, tais como a solicitação, proxenetismo e a manutenção de bordéis. Não significa a eliminação dos proxenetas e bordéis mas, ao invés disso, a renomeação de proxenetas como gerentes de negócios benignos para as mulheres na prostituição e bórdeis como indústrias caseiras controladas por mulheres. A implementação da descriminalização pelo governo é impossível sem alguma forma de regulação governamental da prostituição. Em nenhum país ou estado que conheço a descriminalização existe sem alguma forma de regulação. Livre descriminalização da prostituição sem regulação é um mito.
Quando a prostituição é descriminalizada, o controle é principalmente tirado das mãos da polícia e dado aos conselhos locais. Por exemplo, em países e estados que descriminalizaram o proxenetismo ou as zonas de prostituição, geralmente se seguem regulações civis e administrativas, tais como requerer uma autorização de bordel específica, monitoramento de saúde, impostos em locais de prostituição, ou outras medidas. Ainda, medidas criminais são frequentemente necessárias para conter o crescimento do crime organizado no setor da prostituição.
Após a descriminalização, os conselhos locais são inevitavelmente sobrecarregados com uma série de medidas regulatórias. Os deveres dos conselhos incluem lidar com queixas, incluindo aquelas alegando violência e abuso de mulheres. No entanto, os conselhos locais não têm nem a autoridade policial nem recursos para investigar ou penalizar e, em muitos casos, não possuem capacidade de confrontar operadores de bordéis ilegais. Assim, locais de sexo ilegais se proliferam em cidades e países que descriminalizaram a prostituição e a indústria do sexo e, assim como na Holanda e na Austrália, os mesmos cafetões-empresários controlam os bordéis legais e ilegais.
No discurdo pró-prostituição, a prostituição é trabalho sexual, e não exploração sexual. Proxenetas são agentes de negócios de terceiros que as mulheres escolhem para proteger a si mesmas e seus interesses, e não exploradores de primeira classe. Em Victoria, Austrália, os proxenetas que são proprietários de bordéis são designados como licenciados de serviço de trabalho sexual. Usuários e compradores de prostituição são fregueses ou clientes que proporcionam às mulheres renda, e não abusadores. Bordéis são espaços seguros para as mulheres para trabalhar no seu comércio, não alojamentos onde as mulheres são controladas e mantidas sob controle. Mulheres na prostituição são trabalhadoras do sexo, não vítimas de exploração sexual. E vítimas de tráfico são trabalhadoras do sexo migrantes de quem a passagem de um país a outro é migração facilitada por prestativos deslocadores de pessoas. Mesmo as palavras “acompanhante” e “agências de acompanhantes” fazem o sistema da prostituição soar mais chique e seguro.
Uma palavra final sobre linguagem. Faço uma distinção nesse livro entre trabalhadoras do sexo e sobreviventes. Ambos termos são auto-designados pelas mulheres que estão ou estiveram na prostituição (veja o capítulo 1). Tanto “trabalhadoras do sexo” quanto sobreviventes afirmam representar as mulheres na prostituição. Como usado neste livro, o termo “trabalhadoras do sexo” descreve aquelas que foram ou estiveram na prostituição e que promovem a prostituição como trabalho ou como um serviço sexual comercial. Sobreviventes compreendem a prostituição como violência contra as mulheres e se opõem à mercantilização das mulheres inerente à indústria do sexo. Argumento que é tempo de diferenciar “trabalhadoras sexuais” de sobreviventes (ou seja, distinguir entre aquelas mulheres que ativamente apoiam a indústria do sexo ao advogar por ela daquelas que lutam contra ela). Quando “trabalhadoras do sexo” argumentam pela descriminalização da cafetinagem e da manutenção de bordéis, não agem em nome da maioria das mulheres na prostituição mas, ao invés disso, nos interesses da indústria do sexo.
Defensores do trabalho sexual se tornaram os modernos fabricantes de mitos que sustentam o sistema globalizado da prostituição. Através do mitos gerados por estes defensores em favor da escravidão sexual, ideólogos pró-prostituição ajudaram a lavar a prostituição e o tráfico sexual em muitas partes do mundo.